“Imagine
que não exista nenhum país/ (...) Nada por que matar ou morrer/ Nenhuma
religião também”. Nos célebres versos de “Imagine”, John Lennon
anunciava uma sociedade utópica. E ele iria além da canção: em
manifesto, concebeu a tal nação fictícia, batizada de Nutopia. “Sem
terra, sem fronteiras, sem passaportes, só pessoas. Nutopia não tem leis
que não as cósmicas”, declaravam o ex-beatle e sua esposa, Yoko Ono, em
1973. No ano seguinte, um roqueiro brasileiro apresentava ao público sua
versão da “Sociedade Alternativa”: “Faze o que tu queres, pois é tudo da
lei”, cantou Raul Seixas. Não era coincidência. Cada um à sua maneira, Lennon e Raul bebiam da
mesma fonte, que seduzia jovens no mundo inteiro em tempos de descrença
nos poderes e nas instituições: a contracultura. Dos hippies aos
anarquistas, os anos 1970 abrigaram diversas experiências de rejeição a
todos os sistemas políticos estabelecidos, e propostas de comunidades
alternativas que colocassem o ser humano como centro da vida social. No Brasil, esses ventos de contestação coincidiram com o período mais
grave do regime militar. No momento em que se prendia, torturava e
eliminava quem ousasse se opor ao governo e a censura tomava conta dos
meios de comunicação, eis que surge no Rio de Janeiro um jovem baiano
tocando rock ‘n’ roll legítimo, ironizando os valores vigentes e
pregando coisas estranhas como o egoísmo, o amor livre e a liberdade
incondicional do ser humano. Quem era aquele sujeito? Os
agitos de roqueiro haviam começado ainda Salvador, no início da década
de 1960, quando o jovem Raulzito fundou a banda Relâmpagos do Rock,
depois chamada de The Panthers. Eram as primeiras guitarras elétricas de
que se tinha notícia na conservadora capital baiana. Aos 17 anos, fã de
Elvis Presley, Raulzito não queria saber de escola, repetiu de ano
várias vezes, mas em casa teve acesso à cultura, isolado por horas e
dias a fio na biblioteca do pai. Chegou a prestar vestibular, mas
abandonou o curso de Direito para se dedicar apenas à música. Em 1967,
foi convencido por Jerry Adriani – integrante do já famoso movimento
Jovem Guarda, de Roberto e Erasmo Carlos – a ir ao Rio de Janeiro gravar
um disco. Convite aceito, naquele mesmo ano foi lançado “Raulzito e Os
Panteras”, um fracasso de vendas. O grupo ainda acompanhou Jerry Adriani
em alguns shows, mas se desfez, o que obrigou Raul a voltar para
Salvador. Em 1970 surgiu nova chance: agora um emprego de
produtor-executivo na gravadora CBS. Ele tinha 24 anos e chegava ao Rio
para ficar.
Na capital cultural do país, alguns conterrâneos de Raul já chamavam
atenção no terreno da arte alternativa. Enquanto Gilberto Gil, Caetano
Veloso e Tom Zé comandavam o Tropicalismo, Baby Consuelo, Moraes Moreira
e Pepeu Gomes fundavam uma libertária experiência de vida comunitária
dedicada à música que resultou no grupo Novos Baianos. Como o roqueiro
que chegava, eram todos adeptos do experimentalismo formal, da guitarra
misturada a ritmos nacionais, da adoção de novos comportamentos sociais e
sexuais e, finalmente, do não-engajamento político. Por isso a
contracultura era acusada de “alienada” pela juventude de esquerda, que
pegava em armas para lutar contra a ditadura. Acusação um tanto injusta.
“Era preciso muita vontade e alguma coragem para ser hippie numa
ditadura militar boçal e truculenta. Visados pela polícia, muitos foram
confundidos com militantes da resistência armada, presos e torturados
por engano”, comenta o produtor musical Nelson Motta no livro Noites
tropicais.
Apesar da semelhança estética, Raulzito não entrou na onda de nenhum dos
baianos que chegaram antes dele. Sua idéia de “Sociedade Alternativa”
seria muito mais radical, e ganharia fortes conotações místicas. Tudo
começou em 1971, quando conheceu Paulo Coelho, editor da revista
alternativa 2001. Fã de discos voadores, o roqueiro encontrou na revista
um artigo sobre o assunto e gostou tanto que resolveu procurar seu
autor. Aquelas duas cabeças criativas e alucinadas mergulhariam num mar
de referências para conceber canções com temas até então inéditos por
aqui. Além da Nutopia de Lennon e Yoko, inspiravam-se em autores
clássicos do anarquismo e do individualismo, como Pierre-Joseph Proudhon
(1809-1865) e Max Stirner (1806-1856).
Mas o grande guru da dupla foi o mago inglês Aleister Crowley
(1875-1947). É dele a frase “Faze o que tu queres, pois é tudo da Lei” —
a “lei” concebida por Crowley chamava-se Thelema, palavra grega que
significa “vontade”. Segundo ele, os desejos humanos não deviam sofrer
nenhum tipo de restrição. Considerado satanista por desdenhar as noções
de bem e mal e louvar Deus e o Diabo na mesma proporção, Crowley fez a
cabeça de várias bandas de rock famosas na época, como Iron Maiden e Led
Zeppelin. E também dos Beatles, que estamparam sua foto no meio das
celebridades da capa do revolucionário disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts
Club Band (1967).
Uma inusitada estratégia de marketing proposta por Paulo Coelho levou as
primeiras idéias da Sociedade Alternativa aos lares de todo o Brasil.
No dia 7 de junho de 1973, Raul Seixas convocou a imprensa para
registrar sua aparição em plena Avenida Rio Branco, no Centro do Rio,
violão em punho, cantando a música “Ouro de Tolo”. Deu certo: a cena foi
exibida no “Jornal Nacional”, horário nobre da TV. A canção era uma
bofetada no conformismo nacional diante das vantagens ilusórias
oferecidas pela ditadura: Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego
Sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73
(...)
Eu devia estar contente por ter conseguido tudo que eu quis
Mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado!
(...)
É você olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
E que só usa 10% de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social...
“Ouro de tolo” é o nome que se dava na Idade Média às promessas de
falsos alquimistas. Transpondo a idéia para a década de 1970, Raul
Seixas reduz a nada as aspirações da classe média que apoiou o milagre
econômico da ditadura: a euforia regada pela estabilidade social do
cidadão respeitável e por uma visão religiosa conformista era
simplesmente um “ouro de tolo”.
A
música virou sucesso instantâneo. Contratado pela gravadora Philips,
Raul Seixas juntou “Ouro de Tolo” a outras nove canções para lançar seu
primeiro LP solo: “Krig-Ha, Bandolo!”, ainda em 1973. O ano seguinte
marca uma escalada no projeto de construção da Sociedade Alternativa.
Paulo Coelho publica na Revista Planeta uma análise crítica dos
movimentos de contestação juvenil da década de 1960, principalmente o
dos hippies. Argumenta que, através da poderosa influência dos meios de
comunicação, os valores fundamentais dos hippies propagaram-se pelo
mundo e foram absorvidos pelo sistema de maneira deformada: sua
revolução de valores transformou-se em moda. Citando John Lennon e seu
famoso desabafo “O sonho acabou”, Paulo afirma que “a decadência do
movimento hippie provocou a mais importante e a mais radical
transformação da contracultura: o nascimento das sociedades
alternativas”.
E eles não queriam ficar no plano da utopia. Em terreno cedido pela
sociedade ocultista Argentum Astrum (ligada à Thelema do mago Crowley),
instalam em Paraíba do Sul (RJ) a “Cidade das Estrelas”, para
concretizar o sonho libertário. Enquanto isso, saía o segundo disco-solo
de Raul, “Gita”, com o hino “Sociedade Alternativa”, a mística Gîtâ
(inspirada no texto hindu Bhagavad Gita) e a apoteótica “Trem das sete”,
que profetizava “o Mal de braços e abraços com o Bem num romance
astral”.
Mas sua primeira canção a despertar a censura viria de outro disco
lançado naquele ano: a trilha sonora da novela “O Rebu”, composta por
Raul e Paulo Coelho. Na música “Como vovó já dizia”, dois versos foram
considerados subversivos – “quem não tem papel dá recado pelo muro” e
“quem não tem presente se conforma com o futuro” (substituídas por “quem
não tem filé come pão em osso duro” e “quem não tem visão bate a cara
contra o muro”).
Em maio de 1974, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops)
finalmente fechou o cerco. Raul Seixas foi preso e torturado. “Tudo para
eu poder dizer os nomes das pessoas que faziam parte da Sociedade
Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucionário contra o
governo”, contaria mais tarde.
Nessa fase da ditadura as prisões eram secretas, ao contrário do que
costumava ocorrer com as detenções na segunda metade da década de 1960.
Após o fim da luta armada, a repressão se voltou contra a resistência
cultural ao regime, perseguindo pessoas que expunham suas opiniões
através da música e da imprensa. Foi o caso do roteirista e jornalista
Vladimir Herzog, torturado e morto em 1975.
Segundo Sylvio Passos, presidente do Raul Seixas Oficial Fã-Clube, o
trauma da prisão e da tortura foi duro para Raul, que sempre chorava ao
narrar esses episódios, em conseqüência dos quais desenvolveu uma
paranóia que o fez sofrer muito. Depois de libertados, ele e Paulo
Coelho exilaram-se nos Estados Unidos. Mas o estrondoso sucesso
alcançado por “Gita” – que vendeu 600 mil cópias em todo o Brasil – os
animou a voltar.
Ano novo, disco novo, cheio de contundentes mensagens ideológicas. No LP
de 1975, “Novo Aeon”, Raul canta a poligamia em “A Maçã”, provoca com o
“Rock do Diabo” e radicaliza o individualismo com “Eu sou egoísta”. As
composições com Paulo Coelho agora dividem espaço com outros parceiros,
como Marcelo Motta. Em breve o mago seguiria seu caminho longe de Raul,
para se tornar o maior best-seller brasileiro de todos os tempos. Já o
Maluco Beleza não abriria mão de defender suas crenças até o fim. No
penúltimo disco que gravou (“A Pedra do Gênesis”, em 1988), um Raul já
debilitado pelo alcoolismo revela manter a crença em Crowley na canção
“A Lei” – pura transcrição de frases do mestre ocultista. “Todo homem
tem direito de pensar o que quiser/ Todo homem tem direito de amar a
quem quiser/ Todo homem tem direito de viver como quiser”. Assim viveu
Raul Seixas, cuja estrada chegaria ao fim no ano seguinte.
Se hoje a liberdade de expressão é um valor sagrado, muito se deve à
abertura proporcionada por livres pensadores como Raul Seixas, que
ousaram defender a criação de uma sociedade alternativa à que era
imposta pelo sistema político estabelecido num momento em que tal
atitude implicava altos riscos.
Luiz Lima é doutor em História Social pela USP e autor do livro
Vivendo a sociedade alternativa: Raul Seixas e o seu tempo (Terceira
Margem Editora, 2007).
Raul Seixas escravou os Valores da Ditatura
Reviewed by Blog LBS
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março 18, 2012
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